sábado, setembro 16, 2006

"Vede, não é só para mim que me afadiguei, mas para todos os que a sabedoria procuram"

O daime é um propiciador privilegiado de processos de percepção da espiritualidade e de integração psicoespiritual, na medida em que, por seu efeito ativo sobre o sistema nervoso central, potencializa em curto espaço de tempo possibilidades mentais geralmente não disponíveis em estados comuns de consciência, abrindo nosso coração para a realidade que sempre esteve em nós e à nossa volta e facilitando o processo de nos dispormos a ver brotar no coração o influxo do amor de Deus e a verdade de seu Filho eterno, em Jesus Cristo, por obra do Espírito Santo.
Se a fé em Deus se estriba no respeito à verdade e na convicção na bondade do Senhor – e o que nos compete é solicitar a Graça e trabalhar para fazer-nos merecedores –, a doutrina daimista se estrutura unicamente com base no autoconhecimento e na adesão irrestrita aos princípios que conformam a Verdade e a Bondade – a saber, a justiça e o respeito às virtudes –, incessantemente praticados como tentativa de superação dos elos que nos prendem à ilusão e impedem a união interna, a nós mesmos, e a coesão externa aos outros, nossos irmãos, pela Graça de Deus.

Premissas
Escrevo este relato sobre a vida de mestre Raimundo Irineu Serra, Juramidam, o daime e a doutrina daimista, graças a Deus.
Todavia, desejo explicitar–lhe minhas premissas, para não desapontar você se ele não for como você gostaria de conhecer.
"Daimista", um termo genérico – Para quem busca conhecer e compreender o que seja a "doutrina daimista", um complicador é o fato de muitos dos centros de serviço espiritual que usam a bebida ayahuasca em seus rituais serem genericamente denominados de "daimistas", com o que se obscurecem as importantes diferenças existentes entre as Tradições que conformam as crenças dos variados centros, a estrutura ou dinâmica de seus rituais e os objetivos que buscam atingir.
Então, devo explicar que estarei comentando neste relato, sob o nome de doutrina daimista, a forma específica de evangelização (seus princípios teológicos, doutrinários e ritualísticos) que foi revelada a mestre Raimundo Irineu Serra, pelo Espírito Santo, entre a década de 30 e o ano de 1971 na cidade de Rio Branco, Estado do Acre.
Pois não existe uma "organização religiosa conhecida como Santo Daime" ou o que já se tentou intitular, de forma imprecisa e genérica, como a "irmandade do daime": "a história da Irmandade do Daime não foi essencialmente diferente da de outras sociedades esotéricas que se subdividem ou ramificam durante o curso de sua evolução e prática espiritual".
Ao contrário, bem ao contrário, não apenas muitos dos centros daimistas no Brasil ou no Exterior não têm articulação alguma entre si, tal qual seria em uma organização ou uma "irmandade", como muito poucos deles seguem as orientações originais de mestre Irineu, motivo pelo qual "o ritual no Sul do Brasil é uma re–criação específica de cada grupo de daimistas (…) são dinâmicas bem diferentes entre si".
No máximo, "podemos falar de 'sistema daimista' em caráter amplo, designando todos os grupos religiosos que consomem ayahuasca denominando–a 'Santo Daime' ou simplesmente 'Daime'".
Não existe "daimismo" – Até meados da década de 70 nunca houve algo que pudesse ser chamado de "religião do santo daime", como a partir de então passou a ser alardeado na mídia nacional e mundial, no afã de propalar o que passou a parecer o "surgimento de uma nova religião na Amazônia – a Doutrina do Santo Daime".
Na verdade, a doutrina daimista nem bem seita é, se seita implica "doutrina ou sistema que se afasta da crença ou opinião geral" ou "sociedade cujos membros se agregam voluntariamente e que se mantém à parte do mundo".
No correr do relato veremos o que originou tal alarde sobre uma suposta "nova religião", ou nova seita, dentro da inconsistência filosófica e teológica e da lógica de mercado predominantes em boa parte das produções de certa cultura "nova–era", mas desde já devo esclarecer que há a doutrina cristã explicitada nos Evangelhos e existem, como forma ativa de busca da salvação, os rituais daimistas de evangelização praticados e ensinados por mestre Raimundo Irineu Serra – o que não é, e nunca foi, "uma nova religião".
É exclusivamente dentro desta baliza fundamental de entendimento, então, que utilizo a expressão "doutrina daimista" em todo este relato.
Tanto a doutrina daimista é reapresentação da doutrina cristã, ou "replantio" – assim como o Novo Testamento o foi, em grande parte, do Antigo Testamento: "Não penseis que vim ab–rogar a Lei ou os Profetas: não vim ab–rogar, mas cumprir. Pois em verdade eu vos declaro, antes que passem o céu e terra, não passarão da lei um i nem um ponto do i, sem que tudo haja sido cumprido" –, que alguns dos daimistas mais velhos recordam mestre Irineu preferindo se dizer "uasqueiro", ou tomador de "uasca" (ayahuasca), a "daimista", sinalizando a sua própria percepção de não existir "daimismo", ou "religião daimista": o daime é recurso sacramental propiciador da aproximação a Deus, em Deus, e a identidade e a estrutura doutrinária daimista original são exclusivamente cristãs.
Deus Jesus.
Para ilustrar esta afirmação, reproduzo um diálogo mantido com João Rodrigues Facundes, o "Nica", Secretário da primeira diretoria do CICLU – Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, o único centro de serviços espirituais que foi formalizado por mestre Irineu (em 1971):
– O senhor me recordou um fato, "seu" Nica: no ano passado [1994] eu conversava com dona Peregrina, a viúva do Mestre, e em certo momento eu falei em ser daimista… Aí ela me atalhou: 'eu preferia que o senhor usasse o termo que o Mestre usava. Ele dizia que era uasqueiro'…
– Uasqueiro!
– Isso… Ele dizia assim, "seu" Nica?
– Dizia. E com muita ênfase!
– Mesmo depois de ter dado o nome de daime à bebida?
– Sim, de daime…
– Uasqueiro?
– Uasqueiro, é ele. Ele não fugia, assim, da raiz, né?
– Isso me chamou a atenção, "seu" Nica… Esse comentário da dona Peregrina me chamou muito a atenção!
– Eu, sinceramente, eu posso frisar isso aí como memória, para ficar em memória. São palavras dele, vamos dizer assim, são palavras dele: nós somos, éramos e continuamos sendo uasqueiros.
Mestre Irineu, portanto, não pregou o "daimismo", assim como Jesus não rejeitou a Lei de Moisés (o Antigo Testamento) nem declarou estar "fundando" uma nova religião. Dinâmicas posteriores à Sua passagem pelo mundo, no correr do Século I, especialmente as de evangelização, conduzidas por Paulo, é que deram esta feição à Mensagem e originaram a Igreja Católica.
Provavelmente, diz o estudioso Pierre–Antoine Bernheim, membro da Society of Biblical Literature, "tudo o que Jesus fazia (…) era marcar a prioridade da ética sobre o ritual, sem, entretanto, abandonar o ritual", pois "Jesus se comportava muito provavelmente como um judeu observador dos preceitos, sem questionar nenhum dos aspectos fundamentais da Lei. Dela, Jesus defendia uma concepção na qual o elemento moral tinha prioridade sobre o aspecto ritual [e] isso se manifestava concretamente (…) quando dois mandamentos bíblicos se opunham".
Como escreveu H.D. Betz, "segundo o Sermão da Montanha, Jesus não abandonou a Torá [Antigo Testamento] mas refutou as más interpretações em meio às boas (…) Jesus não proclamava uma 'nova lei' ou uma ética especificamente cristã justapostas à velha lei (Torá) ou à ética dos rabinos, respectivamente; ensinava, antes, a verdadeira natureza da vontade de Deus, como está revelada na Torá [ou Antigo Testamento]".
Pois, nas Suas próprias palavras, "cessai de julgar segundo a aparência, aprendei a julgar segundo o que é justo!".
De certo modo, mestre Irineu fez o mesmo.
A doutrina daimista – Em geral são grandes as dificuldades para quem busca mais do que apenas viver experiências pessoais na doutrina daimista, necessitando conceitos e princípios que ajudem a construir uma compreensão doutrinária mais clara e precisa, porque é atitude comum nos daimistas mais experientes não expor aspectos doutrinários mais complexos ou sutis, sugerindo–se apenas que quem busca "tome daime e procure conhecer", o que ajuda a tornar tudo mais confuso no cenário da cultura nova–era e frente a outros caminhos de desenvolvimento espiritual.
Isso também costuma ocorrer com praticantes de outras formas de servir à espiritualidade, em outras Tradições, Escolas ou Linhas, razão pela qual o Caminho é sempre coalhado de mistérios.
Quanto a esse fato, porém, creio que, embora as nuances do Caminho só se exponham a quem a ele se atira com confiança e pureza de propósitos, donde os Mistérios só se abrirem, pela graça de Deus, a quem os merece, nada há de ruim em esclarecer em detalhes a doutrina, como explicitado nos ensinamentos de mestre Irineu e nos hinos e hinários adotados nos serviços espirituais daimistas.
Tal qual a doutrina cristã original, mais perfeitamente identificável nos quatro Evangelhos e raiz das religiões cristãs católica romana, grega ortodoxa, anglicana e protestante (em suas várias denominações), a doutrina daimista se inscreve no conjunto das doutrinas salvíficas anunciadas por revelação. Entretanto, é não–apocalíptica, ao buscar facilitar a seus fiéis a obtenção da salvação por intervenção da Graça na vida presente, ao invés de crer que só estará no "futuro", "após a morte", o gozo da bem–aventurança.
A despeito de ter brotado ao meio da Amazônia Ocidental, na cidade de Rio Branco, Estado do Acre, é doutrina cristalinamente urbana e nada toma emprestado ou sincretiza de rituais indígenas regionais: constitui–se como um culto devocional mariano, adotando a Imaculada Conceição, Mãe do Filho de Deus, como caminho revelador e consolidador do Verbo e do Espírito Santo no ser humano.
Centrada na realidade Una e Trina de Deus, a doutrina daimista mobiliza vigorosamente a caridade, a esperança e a fé e os valores de coragem e perseverança em rituais sempre grupais que preenchem o seu calendário litúrgico, encerrado todos os anos no dia dos Santos Reis.
Tais rituais, abertos a toda a irmandade e a visitantes, alternam, no correr do tempo, regulares e breves serviços espirituais de introspecção (para íntima avaliação comportamental e ética, catarse e conhecimento visual, auditivo ou intuitivo por iluminação, ou "miração") com poucos mas longos serviços de louvação a Deus, a Jesus Cristo e à Imaculada Conceição (por meio de cânticos e bailados rituais executados no decorrer de várias horas seguidas).
O aspecto catártico, no sentido de "libertação, expulsão ou purgação daquilo que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por esta razão, o corrompe", é propiciado pelos efeitos psicológicos e corporais do daime e pela ação combinada da introspecção pessoal em grupo e dos cânticos rituais.
Com este conjunto de serviços, e de modo significativamente original – no qual reside a mais evidente característica de inovação pelo Espírito Santo –, a doutrina daimista aglutina procedimentos e intensifica possibilidades de realização espiritual através dos quatro modos sempre presentes, em maior ou menor intensidade, em todas as formas conhecidas de busca da salvação: o conhecimento pela revelação, a compreensão pela especulação filosófica, o desenvolvimento da amorosidade pela devoção e o incentivo ao progresso humano pela solidariedade ativa, ao mobilizar e avivar simultaneamente as quatro funções básicas da consciência humana: intuição, pensamento, sentimento e sensação.
(Entendo aqui por "especulação filosófica" o ato de "raciocinar sobre algo", próprio do ser humano, e não a especialidade acadêmica de Filosofia.)
Com isto, e somente a título de comparação, a doutrina daimista resume em si e oferece aos seus fiéis – e nesta oferta reside sua originalidade, volto a lembrar – todas as quatro alternativas de auto–realização ou salvação como já foram propostas pelo Vedantismo, a mais antiga religião ainda viva conhecida: o "caminho do amor devocional" a Deus (bhakti marga), o "caminho do conhecimento pela especulação" (gnana marga), o "caminho das obras altruístas" (karma marga) e o "caminho do domínio da mente" (raja marga).
Atende, assim, às necessidades de quaisquer pessoas que busquem se desenvolver espiritualmente, independente do perfil individual ou grau de sofisticação intelectual e preparo escolar do praticante.
Neste sentido é universalista, embora seu perfil seja predominantemente revelador e amoroso (razão pela qual pôde ser transmitida como revelação da Graça, por meio de revelações privadas da Mãe de Deus a mestre Irineu e por meio do Paráclito e o Verbo habitados nele, seu Mensageiro), equilibrando com o desenvolvimento da intuição reveladora e da amorosidade sentimental os traços predominantes do psiquismo ocidental, que é acentuadamente dirigido pelas funções psíquicas do pensamento especulativo e do cultivo das sensações corporais.
Embora seja reencarnacionista, e nisto divirja das formulações católica, ortodoxa e protestante da fé cristã, a doutrina daimista não tem por objetivo o estabelecimento de contato ativo com o espírito de falecidos (a despeito de que isso possa ocorrer espontaneamente no correr de rituais), assim como não preconiza a ocorrência de incorporações com abolição da consciência, como se dá em práticas do espiritismo kardecista e de sincretismos afro–brasileiros, como a umbanda, visando preservar e expandir a consciência, atributo humano vital para o livre–arbítrio no plano da salvação.
Não é uma "egrégora de elites", no sentido de níveis hierárquicos de saber mantidos estanques entre os fiéis (e entre estes e a coletividade) ou de busca de desenvolvimento de "poderes especiais", pois pressupõe que o nível atingido de integração espiritual é decorrência exclusiva de decisão soberana da Graça e do "merecimento pessoal" do indivíduo, por obras realizadas, nesta ordem de importância – por isso, por mais que se faça, pede–se sempre.
Sua ritualística é despojada, não requerendo mais do que o uso de simples vestimentas uniformizadas, a aquisição do hábito de introspecção auto–avaliadora, a superação de bloqueios íntimos contra o canto em público e o desenvolvimento de atitudes de ativa solidariedade grupal.
A liturgia daimista se cumpre no correr do tempo em reuniões quinzenais de "concentração" (para autoconhecimento, auto–avaliação e "reforma íntima") e "serviços bailados" espaçados (para louvação e celebração a Deus), para os quais não se convida ninguém mas que se abrem a quem os busca, sempre sem a intermediação de "sacerdotes" ou de dirigentes dos cultos, embora haja orientação aos iniciantes, por parte dos mais experientes, quando a ajuda é necessária ou se pedida espontaneamente.
Para que, assim, seja facilitado trilhar o caminho do retorno a Deus, pois, como cantam dois hinos do hinário de Germano Guilherme, o mais próximo seguidor de mestre Irineu, eis a cosmologia e a metafísica da doutrina daimista:
"Divino Pai Eternoo seu mundo veio e formou,o seu mundo veio e formou,e habitou, e habitoucom toda a criação, com toda a criação.Com o Vosso amor,deixou e levou,e tão distante ficou.E tão distante ficou,olhando a sua criação,olhando a sua criação.Com Vosso brilho do amor,com Vosso brilho,com Vosso brilho do amor".
e
"O nosso Pai foi quem mandou,a nossa Mãe recebeu,que foi para este diaque Jesus Cristo nasceu.Ele nasceu neste diapara vir nos ensinar:pela estrada que viemos,por ela nós temos que voltar".
Uma metafísica ascendente, portanto.
A simultaneidade de enfoques – Neste relato comentado não vou adotar uma perspectiva exclusivamente histórica, psicológica, doutrinária ou teológica sobre a doutrina daimista.
Muito ao contrário, por se tratar do relato de história ainda viva, tentarei abordar todos os enfoques – histórico, psicológico, doutrinário e teológico – da melhor forma que eu puder e a partir de várias fontes de informação ou diversos campos de conhecimento, tendo por baliza o que foi ensinado e praticado por mestre Irineu.
Para tanto, embora meu principal foco de interesse seja o teológico e o doutrinário, adotarei neste relato um procedimento unificador, pois "cada uma dessas abordagens [histórica, psicológica, doutrinária ou teológica] ganharia em unidade se isolada das demais, mas perderia em capacidade explicativa (…) Como antropólogo, suponho que esta integração possa ser melhor alcançada sob a perspectiva da antropologia, que, por sua amplitude de interesses e por sua flexibilidade metodológica, está mais habilitada a empreender obras de síntese".
Todavia, lembro que "um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela lingüística e pela arte etc., é traí–lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado".
Então, na primeira parte analisarei a doutrina daimista sob o prisma de sua história formativa, do processo de facilitação da entrega de si à Graça, que a doutrina propicia, e dos desvios doutrinários e ritualísticos ocorridos após a passagem de mestre Irineu – desvios estes que passaram a ser percebidos pela opinião pública como sendo "a doutrina daimista", dada a sua intensa repercussão na mídia, mas que devem ser conhecidos e entendidos em virtude do grau de prejuízo que podem acarretar a quem busca se desenvolver pessoal e espiritualmente.
Na segunda parte, se Deus me ajudar, farei a exegese (ou interpretação analítica) dos hinos da base doutrinária daimista, especialmente os do hinário "O Cruzeiro Universal", recebido por mestre Irineu, com vistas a expor o que, na verdade, mestre Irineu amorosamente replantou: a doutrina cristã.
O daime e outras plantas psicoativas – Embora eu vá relatar e explicar a explícita interdição de mestre Irineu ao uso de daime combinado com quaisquer outras substâncias que tenham efeito sobre a consciência, não identifico em mim preconceito, concordância com estruturas inadequadas de leis sobre drogas ou nenhuma rigidez conceitual sobre o tema: trata–se apenas da convicção de não haver compatibilidade possível entre o daime e outras plantas psicoativas no sutil reino da espiritualidade.
Dediquei–me, por boa parte dos anos 80 e toda a década seguinte, ao estudo sistematizado dos estados de consciência alterada, ou expandida, tal como estudados, descritos e documentados por bioquímicos, neurocientistas, psicólogos e psiquiatras de importantes centros internacionais de pesquisa científica. E boa parte destes estudos se dedica a analisar os efeitos da maconha (cannabis sativa) para alteração de consciência, entre outros princípios químicos naturais ou sintetizados.
Dentro deste conjunto amplo de conhecimentos é que pude, desde cedo, compreender a sábia orientação de mestre Irineu: "quem quiser seguir comigo é com daime e não com outra mistura nenhuma, nem de linhas nem de plantas", pois os caminhos do daime e da maconha são antagônicos na espiritualidade e a qualidade dos seres – "desencarnados" ou "encantados" – que atraem ou vitalizam é distinta demais e demasiado conflitante, além de raras vezes harmonizável (como veremos no capítulo O crisol).
Mas isto será melhor detalhado, adiante.
A existência de seres espirituais – Tenho como verdadeira a existência de seres "espirituais" viventes no "invisível", na "espiritualidade" ou no "astral", como nós chamamos o seu modo de existir, quer seres algum dia materializados em nosso planeta e, hoje, desencarnados que se mantêm vivos em alguma das camadas de existência entre as quais a nossa é apenas uma – "se há um corpo animal, há também um corpo espiritual" –, quer seres nunca encarnados na terra mas, sim, que vivem como encantados em alguma outra camada incorpórea, manifestando–se a nós dentro da obra de Deus.
Em decorrência, tenho como verdadeira a reencarnação dentro da obra de Deus, mesmo que dentro de uma lógica de causa e efeito que por vezes ultrapassa nossa possibilidade de compreender.
Sobre isto, testemunha a Escritura, "eu era, sem dúvida, criança bem dotada e recebera, em quinhão, boa alma; ou antes, como era bom, viera a um corpo sem mancha": encarna–se conforme o necessário e conveniente a cada ser dentro da obra de Deus, obediente à sua destinação.
Mas não vou expor ou pormenorizar teorias de reencarnação, buscando explicitar porque sei ser assim e tentando convencer quem pensa diferente. Simplesmente parto deste princípio – que para mim é mais do que postulado, por ser um bom fruto conhecido e compreendido de experiências tão objetivas quanto o fato de eu estar respirando agora, enquanto escrevo.
Espiritualidade e psicologia – Não percebo sentido algum em conhecer, compreender ou relatar a espiritualidade na vida humana sem considerar os fatos, processos e características do psiquismo, nem que seja pelo fato de que tudo o que nos ocorre, quer por iniciativa nossa, quer por efeito da realidade que nos envolve (na qual as dinâmicas espirituais também são um fator importante) passa por nosso corpo e nossa mente e neles deixa marcas, ao mesmo tempo em que depende de nossa mente e nosso corpo para que o possamos experimentar.
Afinal, encarnamos porque esta é a forma na qual a vontade bondosa de Deus se manifesta em nossa camada de existência, e graças a isso vivemos e morremos, ao menos na forma como nos percebemos.
Em meu entender, a vivência da fé e o estudo da Graça se enriquecem sobremaneira quando são acompanhados pela compreensão dos processos psicológicos humanos. Pois, como Jung escreveu, "Deus nunca falou de outro modo aos homens que não na e pela psique; e a psique o compreende, e nós o experimentamos como algo psíquico. Quem diz que isto é psicologização [da vivência espiritual] nega o olho que enxerga o sol"
Portanto, aqui ou acolá estarei agregando a este relato comentários provindos de minha forma pessoal de conceber o corpo e a mente, assim como sobre sua relação dinâmica com a espiritualidade, sem que isso seja uma tentativa de aprisionar a vivência da fé em conceitos ou símbolos tidos por mim ou por alguém como os mais adequados.
É que creio que "a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo–O e amando–O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio".
Ou, como já se disse do trabalho de santo Agostinho, "o que nesse momento recebia da Fé, iria considerá–lo em obras posteriores à luz do puro conhecimento racional, empenhado em transformar esse dado religioso numa certeza estritamente filosófica. Ficaria sendo essa a grande aspiração da sua inteligência, sobre todas as verdades cristãs – 'crer' e 'entender' – isto é, transformar as verdades acreditadas em certezas rigorosamente racionais, para tornar ainda mais vivo e profundo o mesmo ato de Fé".
Expansão da consciência – Por falar em conhecer e se conhecer, também devo explicar que neste relato, dedicado a expor e comentar o legado original de mestre Raimundo Irineu Serra, o transmissor da doutrina daimista, algo do que narrarei ou comentarei pode ser tido como alucinação.
Entretanto, não pretendo apresentar ou justificar nenhum modelo teórico do que seja, ou não, alucinação.
Apenas destaco um trecho do Relatório Final de Atividades do Grupo de Trabalho instituído em meados dos anos 80 pelo já extinto Confen – Conselho Federal de Entorpecentes, o qual em 1992 redundou na liberação nacional do uso de daime em rituais de serviço à espiritualidade: "propor a reflexão sobre estados de percepção a que o homem pode ser levado e que não parecem merecer a definição de loucura ou insanidade mental, sendo, de resto, no mínimo temerário classificar como ilusão, devaneio ou fantasia. É preciso (…) refletir e repensar a sociedade em que vivemos, onde, com facilidade, classificamos de loucas ou alienadas as pessoas que, com ou sem ayahuasca, optam por formas de vida diferentes das nossas ou buscam processos de conhecimento ou de realização pessoal diversos daqueles estabelecidos".
Porque tenho por verdadeiro o fato de que, geralmente, experiências vividas em estados de consciência expandida, os quais permitem à pessoa ultrapassar o estado de "razão natural", não são alucinações, embora possam ser tão–só imagens de fantasias ou de sonhos vividos em vigília, requerendo de quem as vivencia um humilde, delicado, paciente e por vezes elaborado estudo interno, às vezes coisa de anos – isso, quando consegue entender do que se trata.
Caso não ocorra tal estudo interno, a dificultosa tarefa de discernir para compreender e de recordar para integrar, em sucessivas camadas de memória e experiência, como veremos no capítulo A obra, não chega a bom termo.
Doutrina exclusivamente cristã – A despeito de que no decorrer desse relato eu lance mão de imagens, símbolos, nomenclatura ou descrição de rituais de variadas Tradições, Escolas ou Linhas espirituais, devo relembrar que a doutrina daimista, tal qual desdobrada da eternidade e ensinada na terra por mestre Irineu a partir dos anos 30, deriva de aparições de nossa Senhora e arraiga em base exclusivamente cristã, não tendo sido nunca a difusa e controversa mescla de crenças e doutrinas que a partir dos anos 80 passou a ser mostrada para a opinião pública no Brasil e em vários países do mundo.
Como veremos no capítulo O Alto Santo, houve razões espirituais e amplo proveito institucional no "ecletismo" desordenado de tal mistura de crenças e doutrinas que passou a haver após meados dos anos 70 sob o nome de "religião do santo daime", mas desde já tal distinção fundamental deve ser considerada – sem que isso implique demérito a qualquer, quando analisada em suas próprias características: em si, e para aqueles a elas destinados, as boas doutrinas são sãs, insano é querer mesclá–las porque assim parece adequado ou conveniente.
Então, para que se compreenda melhor a diferença, meu relato se construirá sobre a história de mestre Irineu no mundo, as quatro décadas reveladoras da doutrina daimista (1931–1971) e a exegese de hinos do seu próprio hinário e de outros hinários da base doutrinária, tal como deixado por mestre Irineu antes de sua passagem – exclusivamente os de Germano Guilherme, João Pereira, Maria Marques Vieira "Damião" e Antonio Gomes, exatamente nesta ordem, e a Santa Missa.
Deve ser registrado também que, embora inúmeros outros daimistas tenham hinários de importante riqueza espiritual e humana, eu optei pela interpretação sobre a base doutrinária estabelecida por mestre Irineu pela segurança em não ter havido viés ou corrupção do Ensinamento.
A exegese do conteúdo dos hinos – No decurso do relato, e na exegese, eu não estarei preocupado com a ordem dos hinários que serão analisados – do "O Cruzeiro Universal" à Santa Missa – e nem em manter a seqüência numérica dos hinos de cada hinário, do primeiro ao último.
Quanto a esse aspecto, porque isto me tranqüiliza, lembro que mestre Irineu, na arquitetura da Santa Missa, não apenas começou com um hino que não é do seu hinário como dispôs os próprios hinos em ordem invertida, como a sinalizar que, desde a eternidade, ele cuida do porquê da ordem que está sendo usada a cada instante: porque assim convém à obra de Deus.
Minha intenção, e para isso até mesmo registrarei fragmentos de hinos, ao invés de hinos inteiros, é facilitar a percepção e compreensão dos fundamentos da doutrina daimista, a qual é uma reapresentação da doutrina cristã, atenuando a densidade relativa da cor local de sua manifestação, desta vez acreana, e realçando os valores eternos que ela afirma e prega em benefício da verdade e do bem, uma vez mais, por obra do Espírito Santo e para maior glória de Deus.
A base doutrinária – No trabalho de exegese, devo explicitar que, além dos próprios hinários da base – "tronqueira", como mestre Irineu dizia –, estarei aqui e acolá mencionando também hinos de hinários sem igual mandato doutrinário.
Os hinos constantes neste relato, então, exceto quando assinalado no texto, são indicados pelas iniciais de seu "dono" e o número do hino no respectivo hinário, obedecendo à seguinte codificação alfabética:
AG
Antonio Gomes
NJ
Sebastião Mota de Melo (2o hinário)
GG
Germano Guilherme
PM
Percília Matos da Silva
JP
João Pereira
PS
Sebastião Mota de Melo (1o hinário)
MD
Maria "Damião"
SM
Santa Missa
MI
Mestre Irineu
TA
Tufi Rachid Amin
Além disso, adotei o Dicionário de Antonio Houaiss para no correr do texto uniformizar significados, raiz etimológica ou vocabulário e, no que diz respeito a citações da Escritura (inclusive dos Livros sobre os quais a análise bíblica contemporânea tem dúvidas quanto à autenticidade ou autoria, como Efésios, Hebreus, Pedro e Tiago), optei pela 2a edição brasileira da Bíblia TEB (Tradution Œcuménique de la Bible), que no tocante ao Antigo Testamento tem por base os originais hebraico e aramaico e a versão grega (Septuaginta) e, no que se refere ao Novo Testamento, a Bíblia de Jerusalém (Editions du Cerf) e o Novum Testamentum Græece (mais conhecido como a "edição Nestle–Aland", seus editores).
Assim também, optei por não adotar nenhum dos Evangelhos chamados "apócrifos", destituídos de autoridade canônica e sobre os quais ainda há discrepância quanto à fidelidade aos fatos e fonte de inspiração.
Um relato comentado – E ao fim disto tudo é importante, muito importante!, que eu afirme que a razão e o principal ensinamento deste relato são mestre Raimundo Irineu Serra e sua obra de amor irresistível e exigente, fiel à verdade e bondoso, como é o amor de Deus.
Todavia, pondo fim a uma discussão mantida comigo mesmo por quase dez anos, decidi relatar sua vida e sua obra de forma comentada, razão pela qual nela me incluo como narrador e comentador.
Explico: em 1994, no princípio de meu caminho daimista, decidi escrever a biografia deste homem, ser abençoado que tanto nos iluminou e vem iluminando, desde a eternidade.
Pois logo após ter tomado daime pela primeira vez eu anotara em meu diário: "Sonhei toda a noite. Em meus sonhos, eu organizava os registros de informações sobre [o daime]: seus rituais, seus participantes, seus nomes e apelidos etc. Em vários sonhos eu me via com um caderninho nas mãos, anotando ordenadamente – e até em ordem alfabética e numérica – todas as informações de que eu dispunha, em meio aos freqüentadores dos rituais, como que fazendo um minucioso estudo [sobre o] daime".
Mas como fazê–lo, todavia?
Simplesmente contar a história de um negro maranhense que no começo do Século XX foi para a Amazônia coletar borracha e, assim o fazendo, cronologicamente registrar o que a memória oral daquela região guarda sobre ele e a revelação original da doutrina?
Ou arriscar–me a relatar tal história e aquela obra sob meu próprio e singular ponto de vista, por limitado e particular que fosse, estudioso que sou, desde há muito, de processos metodizados de expansão de consciência para ampliação de conhecimento e compreensão, de inclusão da espiritualidade na Psicologia e das religiões comparadas?
Em meu íntimo sempre julguei ser mais produtiva a segunda hipótese, pois apresentar a doutrina daimista também sob a óptica de experiências vividas por mim e por quem conheci de perto talvez ajudasse a tornar o conteúdo deste relato mais próximo das pessoas que me leriam, muitas delas também comuns, como eu.
Solicito a você, portanto: creia que apenas pretendo ser transmissor do que pude observar, aprender e receber no contato com o legado vivo de mestre Irineu, por meio de minha forma pessoal de narrar e comentar sua história e sua obra e pelo que de bem vi ocorrer a tanta gente.
Sem poder, evidentemente, abranger a totalidade de ensinos presente no que ele nos deixou – "não te afadigues com obras que te ultrapassam" –, tão vasto e profundo é seu significado.
Portanto, como já se disse algum dia, depois de ler este relato credite ao Rei dos mestres o que de bom, belo e verdadeiro tiver vindo a você deste relato – e debite a mim tudo o que não tiver sido assim.
Por alguma razão de Deus, que a Ele devemos tudo, havia de ser deste jeito…